terça-feira, setembro 19, 2006

Sangue Bom.


O sol já nos mostrava a face linda de uma esplendorosa manhã, polido por um calor típico de verão, apesar de estarmos em plena primavera. Diante desta estação cheia de graça e de esperanças, não sendo só as águas de março que trazem promessas de vida ao coração, os brios, altiveza de primavera carregando em todo ser vivo, prostradas ante a vontade de estar em vida, a fervura alegre da luxúria esperando o auge do verão. Rasteiro dentre a persiana, rastejando invadindo as sombras, já enfraquecidas pela manhã, inexistente em sua essência, a luz tentava acabar com o resto de sopro escuro daquele aposento, e alastrando as remelas ao cômodo dos olhos, forçava os cílios de um jovem estudante a abrir seus córneos para mais um dia inesperado, sendo este à vontade de alguém que ri em algum canto. A preguiça desestimula as juntas, fazendo-se esta subitamente teimosa, puxando o corpo por mais alguns minutos de sono a cama. O sono é uma das maiores injustiças da natureza humana, sempre teimando em ir embora, não importando se dormimos o suficiente ou não, contrapartida quanto mais precisamos dele, o sono pode virar-se e demorar a chegar, e neste meio segundo de tempo que esperamos o sono chegar ou partir, o tempo escorre de maneira insuportável pelos sentidos e, vupt, acabou o nosso tempo. Aproveitando a bermuda que usara para dormir, calçou os sapatos, buscou a primeira camisa do armário, pegara a de mais fácil acesso, e como já foi dito, o tempo acabara, o estômago haveria de esperar, não podia atrasar desta vez, tinha que chegar no horário, ou voltaria para casa sem poder novamente assistir aula. Por conta disto saiu um pouco apressado, fechou a porta sem trancar, seu irmão ainda haveria de sair, e por conta de uma ponta de sorte, o elevador já estava ali o esperando, mas claro que a pressa se perdeu no minuto que o elevador demorou em descer os vinte e dois andares, daquele velho vasto edifício. Lentamente, porém contínuo, desce a ladeira esperando o tempo alcançar não sabemos o que, talvez o hábito de contemplar as miúdas da vida, tudo aquilo que nos cerca, desde um besouro de cor excêntrica até o jornal expostos nas bancas, as vitrines do cotidiano chamativas, tanto pela curiosidade mórbida dos acontecimentos do mundo, ataques contínuos ao senso comum, duelando de um lado o fanatismo absorvido em uma massa inapta inescusável de atrocidades, revelando o óbvio de um pensamento há muito ultrapassado, do Homem lobo do Homem, até as futilidades de uma vida em lixo no luxo, misturado em um mundo andrógeno, sem definição aparente. Atravessou em tropeços a rua quando percebera, meio que despercebido, um acaso quando olhara a mulher que passou, deixando vestígios daquele breve ecfonema, o ônibus parado no sinal, pelo menos aos seus olhos nus, já rufando pronto para partir, aquele mesmo ônibus demorado, nunca chega, por mais que alguém o espere, ele vai atrasar, demorar o máximo, e se ele está passando agora, AMANHÃ PASSARÁ O OUTRO, como sabemos, o amanhã é algo inesperável. Acontece que o dia realmente estava a favor deste estudante, entrou no transporte coletivo e partiu satisfeito – Conseguirei chegar a tempo hoje, graças ao bom Deus sorte – pensou sentando-se atrás de uma senhora repleta de compras. Passado alguns minutos, quando o jovem percebe algo inusitado em sua viagem, - O que é que eu estou fazendo em frente à faculdade Santa Ursula? Eu deveria estar indo para a Marquês de Abrantes – Acontece que seus sentidos estavam lentos demais, não percebera que entrara no ônibus à frente o seu, o que acarretou em mais um atraso, a culpa pesou em seus pés por dois motivos, teve quer ir a pé mesmo, e a tristeza o fizeram andar de maneira mais arrastada. A viagem não chega a ser uma viagem, a não ser em sua mente, podendo mais a ser comparado a um pulo.
Ao adentrar a escola, percebe um acontecimento inusitado, algumas tendas armadas e caixas espalhadas por todos os cantos, o que o fez poder passar tranqüilamente desapercebido pelos demais. Pessoas vestidas de branco atendo filas de alunos espalhados pelo grande pátio, formando inúmeros corredores de alunos, subitamente – Com licença meu jovem, o senhor já participou da campanha que estamos promovendo aqui na escola? – Não, ainda não. – É que estamos oferecendo a campanha Doe Sangue Feliz do Hosp... – Neste meio tempo em que começou a ouvir sobre a campanha, enganou as palavras, junto ao olhar do homem que lhe dirigia com tamanha educação, podendo observar as caixas, onde havia sanduíches, chocolates e frutas. O estômago então falou - Ta ótimo! O que tem que ser feito para eu poder participar? – Nada muito difícil. Qual seu nome? – Pedro – Pedro, vem comigo que eu irei cadastrá-lo e depois é só você se conduzir para uma das filas, a doação é bem rápida – Tranqüilo, já perdi a aula mesmo – Após preencher todas as informações necessárias do formulário, conduziu-se para a fila com uma breve delonga, ficou a observar o ambiente, havia até esquecido a fome por um breve momento, contudo ao lembrar que haveria um lanchinho após a doação, logo o sorriso exibiu seus dentes repletos de aparelhos refletindo toda satisfação daquela inesperada manhã. Deitou na maca prostrada atrás de uns toldos no meio do pátio, sorriu de maneira ardil quando a enfermeira veio trazendo a agulha. Logo após a alfinetada em seu braço, já não incomodava mais ficar ali estirado com aquele pequeno pedaço de metal fincado em sua carne, podia-se dizer do prazer que existia em ficar ali, sem fazer nada, não mexer um músculo sequer, estirado em uma maca enquanto de minutos em minutos vinha uma simpática enfermeira ver como se estava passando o doador, sendo que ao mesmo tempo em que não se faz nada, o doador faz muita coisa, está ajudando uma infortunada alma, ou seja, faz-se nada e faz-se tudo. Doar o sangue levou alguns minutos, não muito longos, levantou-se já eufórico, a fome havia triplicado, dominando os pensamentos de imediato, além de uma breve caminhada, a atividade praticada em si no ato de doar sangue, lhe tirou o resto do controle sobre o estômago, mal acabara a enfermeira de lhe tirar o alfinete do braço, levantou-se voraz e na mesma voracidade exterminou com um sanduíche, um não, mas dois pedaços de chocolate, um suco e uma fruta, sim, agora estava satisfeito, tão logo foi tranqüilamente assistir as aulas, de barriga cheia sem mais nada lhe atazanar.. Poderia ter pegado o elevador, mas a preguiça de esperar o fez subir de escada, às vezes é mais difícil esperar o tempo fazer algo. A preguiça de esperar debela a quietação, nos tirando da inércia. A aula que havia perdido era matemática, não sabendo ao certo se perdera a aula por culpa do inconsciente, que sempre nas aulas de maior desgosto o acordara tarde, aos sustos e barrancos, movendo-se atolado por aí, ou o próprio inconsciente o fazendo dormir tarde, tirando-lhe o sono da noite para por durante as aulas. Na verdade foi o que acabou acontecendo, a próxima aula que pertencia à história nacional, foram algumas babas na mochila, que podia até se ver escorrer a mesa. O recreio chegou com um susto, o sinal tocou aliviando de imediato a paciência, onde esta se encontrava mergulhada no enfadonho. Conversou com alguns amigos da sala e desceu para o pátio, podia se ver em seu semblante as marcas do tédio, precisava se distrair um pouco, desviar um pouco a atenção, ouvir de longe as pessoas, parecer que não está ali, como um espírito. Ao chegar no pátio, do outro lado das tendas armadas, ficou olhando umas crianças brincando de pique ao redor, ficavam gritando bastante, mexendo uma com as outras sem se importar em se feriem, dizem o que as palavras vinham à mente sem pestanejar, e ali perto o jovem estudante observava atento, ficou a recordar de seus tempos de criança, das preocupações ganhas e também daquelas perdidas, quando dois meninos pararam por ali e começaram a conversar, um com os olhos esbugalhados de admiração, meio que fantasiosos, enquanto que o outro ouvia atentamente boquiaberto – Matheus, eu acho que sou mágico. Hoje quando eu tava vindo pra escola, junto com a Miriam que trabalha na minha casa, a gente tava no ônibus e quando eu dizia pro ônibus pará, ele parava. Eu até disse pra Miriam e ela disse que eu sou mágico. – Será que eu posso ser mágico tamém? – Eu não sei. Quando você tiver voltando pra casa, você tenta parar o seu ônibus, mas olha que é muito difícil – O jovem estudante ficou ali, sorrindo da ingenuidade dos dois, sorriu também por relembrar a magia que é ser criança, sempre com a esperança como instrumento da percussão de suas vidas. Seu breve momento de reflexão foi interrompido por um de seus amigos que agora sentava ao seu lado, estava com um hambúrguer a mão, repleto de catchup e mostarda, chegando até mesmo a pingar o molho ao chão, escorrendo um pouco pelo guardanapo, um verdadeiro horror, ou uma suculência aos olhos de quem come – Fala Juliano, tranqüilo? – A boca cheia apenas deixou falar alguns balbucios - Você doou sangue? – Quando cheguei. Gostei foi do lanchinho – Respondeu sorrindo maliciosamente – Pior é que tava bom, mesmo! – Conversaram passando por músicas, políticas, mulheres, até que tocou o sinal. Foram até a sala e assistiram as duas ultimas aulas. Química e Física a que acabou com as reservas alimentícias do jovem, a fome estava desperta novamente. Não havendo dinheiro para o lanche, nem a possibilidade de pedir emprestado, não queria gastar dinheiro, nem deixar para ter que gastar depois pagando suas dívidas, então ao passar pelas tendas teve uma brilhante idéia. Claro que não foi a idéia de alegar que havia doado sangue e estava se sentido fraco, cheio de fome, precisando se recompor com mais alguns chocolates e sanduíches, este jovem é cheio de escrúpulos, seu caráter não o deixou fantasiar, nisso resolveu doar sangue novamente e comer tranqüilo, sem culpa ou mazelas da consciência, porém desta vez não poderia se cadastrar, pois correria o risco de ser expulso dali sem o precioso lanche. A doação agora foi mais rápida, não havia filas nem o ato de se cadastrar, os alunos da tarde não haviam chegado ainda, o que fez com que ocorresse sem delongas. Sua satisfação foi inefável diante da colina de prazer que se ergueu em seus sentidos ao dar a primeira mordida naquele sanduíche, o que fez parecer uma eternidade. Não demorou muito e partiu contente, um pouco embriagado, mas como todo bom embriagado, contente, ainda pensou – Hoje eu vou malhar pesado.

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