terça-feira, julho 14, 2009

Cotidiano Às Avessas.







Cotidiano às avessas.

Virava as páginas com precisão, parecia saber o que procurava. Apesar de sua boa condição social, Guilherme comia às vezes em restaurantes mais humildes, de comidas caseiras e de pratos regionais. O cheiro da comida que vinha da cozinha, parecia conter o perfume da nostalgia. Seu estômago sentia reviver e revirar algo em suas paredes; mostrando indícios de um nervosismo e de lembranças adormecidas. Junto com o tremor das paredes intestinais, o cérebro automaticamente lincava às lembranças; as imagens vinham lentas e aos poucos, com informações que haviam sumido de sua consciência, tal qual a morte na imaginação de uma criança. A paisagem lhe falava obscuridades, fatos que ele decidira esquecer, acontece que as imagens nunca nos abandonam, elas teimam em continuar vivas ao redor, nos lembrando de tudo. O restaurante fica na Cinelândia, e na praça todo um mundo novo o observa de soslaio; um mendigo e todas as suas tralhas se instalavam num dos bancos da praça; outros ficavam ao redor da estátua, conversando sabe-se lá o que, talvez não entendesse, ou talvez achássemos banal de mais, não importa muito, Guilherme olhava atento a tudo, na medida em que buscava um prato no cardápio a sua frente. Escolheu língua com arroz de brócolis, um suculento prato numa textura borrachuda. A mente de Guilherme rabiscava o esboço do que seria sua tarde, não precisaria voltar ao escritório, já havia adiantando todos os processos, e já haviam pessoas encarregadas de duas audiências, sobre o que é o litígio não importa, o mais importante é que Guilherme não aguentava mais as novelas e picuinhas em que protagonizava no seu ambiente de trabalho, sempre histórias e casos entre as mediocridades e invenções dos funcionários do escritório, até a secretária entrava no bojo, e por falar nisso, já era ela ligando para Guilherme:
- Oi. – Uma vez melodiosa o excitava do outro lado da linha.
- Tudo bem? – Acenou para o garçom trazer mais uma rodada de chope.
- Ainda está de pé? – Mais um clichê do cotidiano. A secretária e o chefe. Porém existe uma peculiaridade nesta secretária, e logo saberemos qual é.
- Claro. Pode chamar a menina. Mas eu quero uma liberal, sem pudores.
- Não se preocupe Dr. Guilherme, A Priscila é do jeito que você gosta, e ainda por cima Ruiva, dos pés à cabeça. Uma delicia. Uma vez me disseram que comer um cu ruivo dá sete anos de sorte.
- Hum... Interessante. – Guilherme esboçou um breve sorriso. - Quanto mesmo vai sair a brincadeira?
- Trezentos reais, duas horas.
- Mais o taxi? – disse coçando o queixo ansioso, essas conversas o deixavam excitado e ao mesmo tempo apreensivo pelo prazer.
- Não, o taxi já está incluso.
- Então, ligarei dum motel em Copa, quando eu já estiver hospedado.
- Anote o cel direto dela, disse incisiva. - Anotado o número ambos desligam formalmente. Guilherme reparava na sucessão dos acontecimentos que lhe cercavam; Alguns camelôs corriam desnorteados carregando suas muambas, de certo estavam fugindo do rapa; a grande revolução em que vivemos imersos na juventude acaba se desfazendo em poucos casos de pessoas em busca de soluções para um cotidiano mesquinho. As responsabilidades vão tomando conta de abrupto, devorando seus sonhos tal qual a lava; quente e traga tudo a sua frente, derretendo sonhos e realidades invertidas em seus sentidos. Aos olhos do nosso parecer, inebriado pelo cisto do torpor, tudo faz sentido desde que possamos justificar nosso esmorecer apenas nos hábitos do cotidiano e na velhice. A resposta da vida não está apenas no convívio com o próximo, está na relação da humanidade com o todo; com os outros seres; com as outras formas; com a própria vida em si; com a morte que sempre lhe espreita nas curvas do acaso. Guilherme apenas existia de forma opaca e sem brilho, os sonhos se tornaram escolhas difíceis, assim como toda poesia se tornara o discurso de algum político. Até aquele rosto de outrora não lhe pertencia mais. Suas necessidades eram poucas, porém vis. O prato chega à sua mesa. O garçom o traz numa bandeja equilibrando com determinada maestria. O gingar do corpo a cada passo em falso, hesitante e descompassado, passa no minuto seguinte o detalhado movimento gracioso e decidido de um malabarista. O Garçom coloca a mesa com agilidade aliada a velocidade, enquanto Guilherme observa o homem trabalhar. Os sentimentos diversos começam a divergir em Guilherme, trazendo um desconforto obsceno, começando a mexer bastante as mãos e a precipitar uma paranóia de perseguição. Após o Garçom o servi-lo, começou a comer lentamente. A Língua tinha uma textura borrachuda, não era uma das melhores, mas estava de bom grado. Num ímpeto incontrolado as lembranças sobrepujaram o sabor da carne, e mastigando olhando seus devaneios, as imagens da imaginação saltaram tão reais que o fez parar por completo. Engoliu e continuou olhando para frente, absorto pelas quimeras que o tragavam em sua acidez de loucura. Vagava em um passado distante, onde ainda acreditava que seguia sua personalidade cegamente, contudo apenas ia seguindo o que lhe empurravam com obrigação, nunca tentou descobrir sua verdadeira vocação; a música ficou oprimida pela falta de incentivo; o esporte era estrelismo demais, tinha de se expor excessivamente, algo que para Guilherme era doloroso; qualquer outra arte fora desestimulada pelo meio, forjado ao meio um nobre família de empresários que o estimulava apenas a seguir a estrada da família, sem se conhecer, sem nunca se encarar no espelho e saber verdadeiramente quem é; o rio ditava e a mente se afogava em suas águas geladas de tradição familiar. Tirou do fundo de uma recordação uma imagem do passado em que jogava futebol pela primeira vez. A vergonha de entrar em campo até hoje o deixava nervoso, o coração acelerava e os ouvidos recordam de seus amigos gritando e xingando devida sua péssima atuação. Não que seja péssimo jogador, mas nervoso ninguém pode ao menos saber se tem o gosto pelo assunto. Guilherme era franzino e usava óculos redondos, tinha até um molejo nas pernas, contudo ao meio da tensão, não conseguia ter domínio sobre suas ações. Percebia agora que sua vida se tornara um retalho de escolhas, só que as decisões foram impostas pelo meio em que vivia, e não pelos gostos que sua personalidade exigia. A folha em branco que fora sua alma, se tornou o rascunho daqueles que o cercavam. Guilherme olhava contemplativo para sua vida, buscava soluções para entender, porque depois de tanto tempo resolvera abrir sua Caixinha de Pandora. Terminou de comer, não pediu a conta, apenas deixou o dinheiro em cima da mesa, em baixo do azeite, pois já sabia quanto era, inclusive os dez por cento com um troco a mais. Levantou ainda absorto em sua mente, preso nos mundos do passado. Passou por uma loja e viu um reflexo no vidro da loja, não parecia seu rosto, isso o assustou, sua fisionomia mudou num relance, parou e deu um passo à trás, para rever de quem era realmente aquela face. O reflexo estava lá, era realmente o seu rosto no espelho que formava o vidro com a luz forte. Seu rosto na vitrine o tranqüilizou, por uma fração de segundos achou que tinha visto uma aberração em forma de si; o que fazer, quando você não é você, ou quando você nunca foi você mesmo? As perguntas vinham de sobressalto atropelando o bom senso. Cortou num passo decidido a Praça da Cinelândia, quanto mais rápido chegar em casa melhor, pois sua mulher só chegaria na próxima semana, dava tempo para uma boa foda pra relaxar os vícios. Entrou na fila dos bilhetes atrás de uma Senhora de Cabelos Ruivos, de estatura mediana e de cintura ligeiramente larga, causa de uma idade avançada. Seu rosto era bonito apesar das cicatrizes do tempo. Imaginou que esta Senhora já fora sorte de vários caras, devido ao seu cu Ruivo, conforme afirmou a Secretária. O sorriso novamente lhe enfeitou a face. Um homem de traços efeminados passou e achou que o sorriso fora pra ele, e sorriu de volta com um olhar malicioso. Guilherme não gostou nem um pouco disso, transformou seu sorriso numa fisionomia má, de olhar compenetrado e frio, apenas para mostrar que tudo fora um grande equívoco. O fato irritou Guilherme, talvez pelo fato de ainda estar confuso. Mandou um foda-se a tudo e voltou a caminhar num passo rítmico. Passou por uma banca, meio inebriado olhou para as noticias incredulamente, tudo parecia distante demais do seu pequeno mundo virtual. Comprou um exemplar do jornal e retornou ao seu caminho.

quarta-feira, março 11, 2009

Tudo se voltará ao nada.








O tempo é democrático
O mais
E talvez único acontecimento democrático que circunda os homens
Seu hálito encanecido nos saúda todas as manhãs
E nada além da eternidade para dizer;
É chegada a hora de todos renascerem.
Não existe fuga,
O tempo nos mostrará todas as verdades que fingimos não ver.
A escolha senil de não fazer nada,
Apenas desejar ir de encontro ao fim,
Não trará a piedade do tecido.
Deixe-se sentir,
Deixe-se provar.
Amanhã as palavras irão sumir e não trarão sentido,
Tão pouco respostas,
E não pense esperar significados nos olhares dos que lhe julgam.
A letra da canção continuará em suas melodias indecifráveis,
Mesmo perdido poderemos nos encontrar em pequenos atos,
Minuciosos toques,
Sutil.
Pergunte a primavera se as folhas cairão no outono,
Pelo menos questione se o sol brilha por ti.
E a confusão é a chave de qualquer ordem,
Ouvindo a perdição do contemporâneo.
Fortalecendo as fronteiras imaginárias do caos.
A responsabilidade não é a culpa de carregar os cativados,
E assim que o vazio se tornar completo
Deixará uma nódoa de lágrima esquecida no canto da bochecha.
Poderemos rir para amenizar a dor,
Talvez até gargalhar,
Contudo cedo ou tarde não poderemos voltar como fomos um dia,
Não é fácil envelhecer,
Não é difícil aprender a viver,
Apenas tenha consciência de que a verdade sempre é dita,
Mesmo depois de sua ida,
Ainda falarão de ti.
Não se esqueça de se despedir aos poucos de todos,
A cada dia é um dia perdido,
Uma fração a menos do seu universo que se esvai.
Contudo,
Ainda podemos ter a certeza de uma única afirmativa,
Mesmo que lhe tirem tudo,
E mesmo que a vida lhe fuja aos poucos a cada milésimo de segundo,
Tudo se voltará ao nada,
Enquanto o nada renascerá em tudo.