domingo, fevereiro 28, 2010

Prefácio.









O tempo é uma certeza de vida, tanto quanto o de morte; e a vida é o que você leva pra eternidade, você querendo ou não. No momento em que ela se extingue, o que você leva, é o seu ultimo segundo. Então cuide deste último segundo. 

terça-feira, fevereiro 23, 2010

Boca Rasgada.




Não faz tanto tempo assim,
Em que o tempo me deixou sem lembranças.
Eu mantenho meus braços fortes
Sustentando as feridas,
Para que o sangue pulse,
Sem saber para onde jorrar.
Sinto que pensar fará deslembrar cada vez mais.
Nas madrugadas de insônia
Tentarei correr sem pernas,
E sem pulso viajarei num mundo sem janelas,
Em diversas cores perdido no preto e branco.
Meu corpo se meche conforme o silêncio,
Deixastes minha boca costurada, e confusa.
Em fios de nylon visíveis e manchados de sangue,
Minha curta vida alongou-se no tempo.
Eu posso ver um passado inédito nas minhas veias poluídas,
Feito de quimeras e fantasias obscuras,
Corruptas pelos mesmos vícios daqueles que se autodestroem em todas as dimensões,
Sem ver o caos deixado pra trás.
Mesmo assim lhe vejo no reflexo do meu retrovisor,
Correndo sem pernas,
Sem pulso para me acompanhar.
O fim veio só de um olhar,
Sem gelo e com o calor da tristeza.
Queimei minha pele selado num beijo,
A saliva secou e se transformou numa gota de lágrima,
Salgada como o mar e perdido em sua imensidão de dimensões azuis.
A boca costurada rasgou as entranhas da linguagem,
Tornando o beijo repulsivo,
E dançando em silêncio no preto e branco,
ausente de qualquer pulsar,
viajo num mundo onde as janelas não se fecham,
pois elas não existem,
e onde a porta eu nunca cheguei a ver.  

Lobato Dumond. 

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Big Bang.




Cheguei ao metrô. A camisa parecia mais um pano de chão de tanto suor, o calor era suportável, insuportável era ficar de camisa e calça. Os índios tinham razão, esta terra é mãe dos pelados. O metrô estava cheio, pessoas derretiam os restos de sanidade com a fisionomia do desespero. Um urso polar deve estar agonizando em algum lugar deste planeta infernal. Os minutos se arrastam na espera do metrô, o tempo parece não passar nunca; um velório seria mais rápido. O metrô chegou estrondando em seus sons metálicos espalhafatosos. À medida que ia parando os vagões, percebi que havia carros com as luzes apagadas, e outros com luzes “meia bomba”. As pessoas fizeram um tumulto correndo em direção as portas, o que me fez lembrar o Haiti; não é aqui. Para fugir do tumulto insano, parei em frente ao vagão onde tinha menos gente, apenas algumas pobres almas, o curioso é que a maioria lá dentro estava cabisbaixa e os homens sem camisa. A porta automática abriu. Imediatamente um bafo insuportável me tragou e, com medo de perder o metrô, entrei contrariado com mais duas pessoas. Era uma sauna lá dentro, todos se abanavam e sopravam os braços para não morrer de calor, sim, morrer de calor. Pensei que alguém poderia desmaiar a qualquer segundo lá dentro. Logo que entrei algumas gotas já saltaram de minha testa e pingaram do meu rosto, olhava os pingos de suor e via-os evaporarem antes de tocarem o solo. O calor consumia minha respiração ofegante, ao mesmo tempo em que meus pés me traíam cambaleantes. Respirava fundo um ar que não existia, as outras pessoas do vagão estavam prostradas nos assentos. Olhares vazios procuravam um copo d’água. Pensei em sair, mas não houve tempo, as portas fecharam logo atrás de mim, pensei em desmaiar, todavia meu corpo agüentou bem. Não sei como aquele Senhor ao meu lado estava agüentando o insuportável calor, mas nisso ele puxa assunto:
- O governo só vai comprar mais vagões em 2011, até lá vamos viver neste inferno. – Seus olhos eram cansados, porém bastante atentos e vivos. O hálito fedia a macarrão, me afastei um pouco. – Não sei o que aconteceu. Como deixaram circular um vagão sem ar condicionado, é impossível ficar aqui dentro. Também não sei como estas pessoas daqui não foram para outro vagão, deveriam se mobilizar. – Completou com um olhar jubiloso. Não entendi aquele olhar de prazer ao falar, estava totalmente fora de contexto. Continuou. – Justamente o que digo. Tirem estas suas patas deprimidas do solo, usem-na para alguma coisa; enquanto houver o céu, há de vir nuvens nos abençoar. – Seus olhos inflamaram na palavra abençoar. No tempo que traduzia seus pensamentos conturbados, o suor aumentava em cada milímetro percorrido. As pessoas iam demonstrando fraqueza, cabeças baixas e braços pesados. O trem pára. Rapidamente as pessoas migram para outro vagão, enquanto novos e diferentes desavisados entravam no vagão escangalhado, e mais uma vez me vi diante da face brasileira; cansada e abatida pelo calor da incompetência. Entrei no vagão, ainda sentindo o calor, mas o alívio logo dominou meus sentidos. Não estava tão gelado como deveria estar. O tumulto dos desesperados causava um bafo, mesmo no ar condicionado. Fiquei em pé exprimido ao lado de uma gorda fedorenta. Seu traseiro ocupava qualquer espaço livre. O ar ficou pesado com a lotação. O Metrô se tornara um matadouro cruel, uma lata de sardinha deveria ser mais confortável. Logo a gorda decide se expressar; em face desdenhosa e altiva. 
- Em breve a estação do Botafogo vai se tornar de passagem para outras proximidades, que nem a Estácio. – Todos se entreolharam. Não entendendo o que se passava, logo sou surpreendido por uma voz ao meu lado.
- O governo só vai comprar mais vagões em 2011, até lá vamos viver neste inferno. – O bafo de macarrão voltou impregnando o ar. Saí de perto. Não queria ouvir a mesma ladainha. Empurrei as pessoas querendo ficar distante daquele cara bafão. Abruptamente o trem começa a frear. Alguém puxou o freio de emergência, de certo. As pessoas se exprimem ainda mais, mesmo com o ar ligado, o suor começa a umedecer meus poros. Pescoços e olhares procuram respostas no meio do vagão. O murmúrio começa a lotar o ambiente num som de ondas colidindo com pedras. Num inesperado acontecimento, um homem de olhar pacato se levanta no meio da multidão. O calor aperta, sinto como se o Cristo Redentor não abrisse mais seus braços sobre a cidade, e sim carrega um tridente no meio deste inferno. O homem de olhar pacato olha para o lado avistando uma mulher de roupas ortodoxas, esta lhe retribui o olhar com um aceno de cabeça. Aproximo-me das portas empurrando as pessoas, aquilo não estava me cheirando bem, e não parecia um peido. Fiquei receoso ao lado da porta, ambos tinham um olhar insano, cheio de certezas e dogmas, sim, o olhar era impetuoso e, sem deixar de colar todas minhas costas na porta do vagão, num sorriso amarelo, com os dentes bem trincados, o homem de olhar pacato começa a discursar:
- Meus irmãos aqui presentes.
-... E minhas irmãs... – interrompeu a Mulher de Roupas Ortodoxas.
- Nós fazemos parte de um grupo em recuperação, pertencente à assembleia de Deus. – Voltou a resmungar o homem. Estranho, sua voz realmente carrancuda, como sua face escrota. – Estamos aqui em busca de um pouco de atenção ($). Eu tive uma visão. – Completou.
-... Ele teve uma visão. – interrompeu novamente a Mulher Ortodoxa. 
- E nesta visão o Homem tinha encontrado a paz. – Coçou o braço freneticamente, como se quisesse provocar uma ferida no próprio braço. 
-... O ser humano ele quis dizer... – A Ortodoxa entrecortou o Pacato. Não gostava muito do rumo daquela porra de conversa, estava me deixando nervoso. Comecei a forçar a porta do metrô para sair dali na marra. Nada de movimentos, todos olhavam passivos sem saber o que fazer, se ouvia ou metralhavam aqueles loucos de porrada. 
- E vejam como já dizia o versículo um de coríntios, “Graça e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo”.
- Sim, nosso Senhor Jesus Cristo. – repetiu a Irritante Ortodoxa. Sua voz, para completar sua figura horripilante, soava estridente e fanhosa. Trajava uma saia que arrastava no chão e toda de preto, não parecia estar vestida como freira, estava mais pra viúva. As freiras são as viúvas de nosso Senhor Jesus Cristo? Perguntei a mim mesmo. Não soube tal resposta e me calei, no mesmo tempo em que cedia a porta do vagão. Alguns passageiros olharam, notando a porta se abrindo. Intrigados e curiosos permaneciam olhando o nosso pacato guerreiro de Deus. 
- Nosso Pai está entre nós, algumas pessoas já sabem disso, - Continuava Pacato. – Outros, porém, esqueceram de sua força e de sua superioridade entre os Homens... – Seus olhos pediam alguma coisa na medida do correr de seu discurso. 
- Do ser humano você quis dizer. – Interrompia novamente a Ortodoxa Viúva. 
- Nós – Prosseguiu Pacato. – já percebemos sua força e largamos as drogas, vencemos pela raiz, fora extirpada de nossos poros, pelos delírios notívagos de um lagarto louco, o sol lançou seu poder sobre a terra e se fez a vida, graças ao nosso Senhor Jesus Cristo.
- Viva a Mãe de Deus! – Vociferou Ortodoxa. Mas de que diabos estes loucos estão falando?
-... Convocastes como para uma festa a multidão de terrores. No dia do furor divino ninguém fugiu, nenhum escapou. E aqueles que criei e eduquei meu inimigo os exterminou! – Pacato estava cada vez mais empolgado em seu discurso. - Levanta-te à noite; grita ao início de cada vigília; que se derrame teu coração ante a face do Senhor. Ergue para ele as mãos, pela vida de teus filhos que caem de inanição, em todos os cantos das ruas. – Não entendia muito que queria dizer aquelas merdas, mas os passageiros estavam já impacientes, alguns até assustados com tamanha loucura. - Abrem a boca contra ti todos os teus inimigos. Escarnecem e rangem os dentes. Nós destruímos, dizem eles, eis o dia esperado, estamos nele, estamos vendo! -Terminei de abrir a porta, mas estavam todos compenetrados demais no show. - Ei-lo que vem com as nuvens. Todos os olhos o verão, mesmo aqueles que o traspassaram. Por sua causa, hão de lamentarem-se todas as raças da terra. Sim. Amém. – Pacato seguia em sua apresentação fantasmagórica, por assim dizer, gesticulava muito e sua fisionomia sofria uma pequena transformação em cada palavra. 
- Amém. – Repetiu Ortodoxa. 
- Amém. - Alguns gatos pingados ecoaram em coro. Não estava gostando muito daquela lavagem cerebral coletiva, só sei que me precipitei e coloquei uma perna para fora do vagão, estava pronto para sair dali.
- Ei-lo que vem com as nuvens. Todos os olhos o verão, mesmo aqueles que o traspassaram. Por sua causa, hão de lamentar-se todas as raças da terra. Sim. Amém. Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, aquele que é, que era e que vem, o Dominador. Ao vê-lo, caí como morto aos seus pés. Ele, porém, pôs sobre mim sua mão direita e disse: Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, e o que vive. Pois estive morto, e eis-me de novo vivo pelos séculos dos séculos; tenho as chaves da morte e da região dos mortos. Lembra-te de como recebeste e ouviste a doutrina. Observa-a e arrepende-te. Se não vigiares, virei a ti como um ladrão, e não saberás a que horas te surpreenderei.
São Mateus 16,16. Simão Pedro respondeu: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo! – Aquela merda estava me matando de tédio, quando num súbito movimento os dois servos de Jesus abrem suas casacas, enquanto a mulher abre sua saia, mostrando uma perna bem torneada, ambos lotados de explosivos pelo corpo, e Pacato ainda puxa uma granada. - Se uma mulher se aproximar de um animal para se prostituir com ele, será morta juntamente com o animal. Serão mortos, e levarão a sua iniqüidade. Estamos no juízo final A morte e a peste hão de reinar, se é que já não reinam. – Não fico ali esperando a merda toda detonar na minha cara. Corro porta a fora e mexo minhas pernas numa velocidade que as fazem doer. Maldito fanatismo, sinto-me em Israel, na faixa de gaza, ou num dia de cão na Rocinha. Corro na direção em que seguia o Metrô. Devíamos estar perto da próxima parada. Corro como nunca corri em toda minha vida. A respiração aperta meus pulmões, o ar parece não ser o suficiente, ao passo que meu coração acelera num frenesi absurdo, penso que dentre de instantes posso, a qualquer minuto, cuspir meu coração; corro; corro; corro; corro; respiro; no desespero corro ainda mais. O túnel é quase um breu por completo, corro sem olhar para trás. Percebo que alguns passos também me acompanham, logo atrás de mim. Não preciso saber quem é. Apenas corro; corro; corro. Consigo ouvir de longe o som de um tumulto no trem onde estava, muita confusão, murmúrios; gritaria; caos; desordem; ecos. O clarão de repente se aproxima após uma curva. A luz. Finalmente entendi a luz no fim do túnel. Subo correndo tentando não tocar nos trilhos. Começo a gritar que há loucos no Metrô. Muitos me olham sem entender porra nenhuma. Outro grupo que corria atrás de mim, sobe igualmente na plataforma. Um cara estabanado morre eletrocutado ao tentar escalar a estação. A faísca assusta os demais pedestres, e a correria toma conta do lugar; uns se distanciam; os curiosos se tumultuam para ver o corpo. O cheiro de carne queimada fede o local, igual um incenso. Eu não quero nem saber, continuo correndo, queria me ver longe dali. Respiro tentando arfar todo o ar que tenho direito. Logo alguém grita:
- Esta porra toda vai explodir. – Muitos não sabem o que fazer. As pessoas estavam aturdidas, perdidas em seu terror, não esperavam que um dia, num pacato dia, o mundo realmente poderia acabar. Não o mundo todo, porém o mundo de algumas pessoas. Comecei atropelar todos que transpusessem meu caminho. De súbito tudo começou a tremer num relâmpago ao longe, o estrondo fora ensurdecedor. Pequenos pedaços de concreto começaram a cair. Um Senhor tem o crânio esmagado, bem na minha frente. Não tive muito tempo para me estarrecer. Gritos ecoaram e choros logo começaram a tanger o quadro do terror. O fogo chega lambendo e matando algumas pessoas que olhavam o corpo do eletrocutado estabanado. Atropelava pessoas desmedidamente. Empurrava-os de contra o chão com toda minha força bruta. Homens e mulheres se puxavam tentando se salvar diante o terror. Cheguei na superfície e vi um daqueles tumultos homéricos; Policiais tentavam conter a população em estado de choque; carros de todas as emissoras de TV já cobriam todo o acontecimento ao vivo; Civis ainda subiam pelas escadas com feridos a tira colo, muitos sangrando ou aterrorizados; correr era o que mais se via; parar para ver, era o que mais se fazia; Diante tudo aquilo, não pude deixar de pensar:
- Aquelas pessoas, realmente, sabiam acordar Deus.