segunda-feira, março 22, 2010

O Último Segundo




Prefácio.
O tempo é uma certeza de vida, tanto quanto o de morte; e a vida é o que você leva pra eternidade, você querendo ou não. No momento em que ela se extingue, o que você leva, é o seu ultimo segundo. Então cuide deste último segundo.

Precisava chegar a Praça Mauá, sendo que me encontrava na Lapa. O calor continuava a matar os pingüins do mundo, enquanto eu derretia a minha calota polar. Os passos arrastavam meu corpo pela Mem de Sá. Um ônibus parou de relance ao meu lado, impossível andar neste calor até a Praça, então logo entrei no ônibus, mesmo sem saber o número – Este ônibus passa pela Praça Mauá? - perguntei.
- Devo passar por lá sim. – Resmungou o Motorista estabanado, não sabia se partia; se ficava; se olhava pelo retrovisor; ou se olhava pra frente. O Motorista tinha uma cara carrancuda, e em gestos afoitos recebeu meu dinheiro. Alguém teve a brilhante idéia de colocá-lo trocador e motorista, não é à toa que estava perdido. Peguei meu lugar e comecei a desfrutar do abismo que pode ser a Lapa; ruas lotadas de transeuntes a descer e subir; Muitos vislumbram de frente e encaram a possibilidade do pulo, afinal, todo abismo é um convite a pular. Um Senhor Manco se aproximou do Motorista, trajava uma camisa esburacada, sua voz era lenta e estridente.
- Meu bom homem, este ônibus passa na Rua México? – Trazia na voz a humildade de quem se espatifou numa queda impossível, vai ver era o abismo. Sentou-se perto de mim, não ao meu lado, e continuamos viagem. Subitamente o ônibus gira numa curva em uma ruazinha que ninguém conhecia. Ocorre um pequeno rebuliço e sussurros, todos se perguntando; “mas que merda é essa”? Um casal mais a frente começam a esbravejar.
- Meu amigo, este ônibus não passa na Cinelândia? – Gesticulavam muito, desvendando toda insatisfação, ambos tinham certeza de que este veículo passaria na Cinelândia. O caminho estava ficando cada vez mais confuso, e mais confuso ainda era o Motorista que disse.
- Eu passo na volta, não? – Perguntou a todos, ainda mais confuso. Se ele não sabe, como saberei? Confiantes de que o veículo passaria pela Cinelândia, o casal se calou, e continuamos a perambular pelas tortuosas ruas da Lapa, escapulindo pelas brechas sinuosas e estreitas. Paramos em um ponto ulterior, onde subiu um homem de idade avançada, com o rosto bem danificado pela falta de cuidados, sua pele parecia um saco plástico enrugado, carregava um carrinho de compras cheio de tralhas, sobretudo latinhas de cervas; trajava trapos pelos corpos, o fedor era incrível; numa das mãos carregava um copinho branco de plástico, provavelmente com pinga; Apesar da idade avançada e da pobreza latente, seu corpo era forte, os músculos sobressaíam em sua velha pele franzida, nisso ele diz, meio torto. – Pra onde vai isso aqui? – tomou mais um gole e, estrábico, jogou algumas moedas pro motorista.
- Acho que não sei, devo na volta passar na Cinelândia. – Houve sussurros. O veículo deu a partida e seguiu viagem. Não sabia dizer quem estava mais perdido naquele ônibus; os passageiros ou o Motorista, ou quem sabe este velho das latinhas. Um cara gordo que sentava ocupando toda uma poltrona de dois lugares levantou com dificuldade e caminhou até aporta esmagando aqueles que estavam de pé; risos e resmungos atirados como pedras ao obeso. O sinal foi dado para o veículo parar no ponto, porém não parou, seguiu a toda. Muitos passageiros que esperavam o ônibus no ponto vociferaram em todos os palavrões possíveis, o Gordão que queria descer também reclamou. O Motorista decide parar abruptamente jogando no chão alguns passageiros; risos, sussurros e reclamações. Muitos desceram. Alguns ainda permaneceram no ônibus, como o casal, o Senhor de camisa furada e puída, o catador de latinhas alcoólatra dentre outros gatos pingados. Chegamos num retorno no alto de uma rua, onde um caminhão de mudanças estava parado, seria impossível passar. Os dois Motoristas começaram a discutir. Não prestei mais atenção no que eles resmungavam; quem estava no direito de que, quem realmente seria o dono da rua.  Meu olhar sobre o mundo mudou num piscar de olhos; Fiquei olhando a rua; as casas construídas uma ao lado da outra, amparando e dando formato os lugares que habitamos; no mesmo espaço dividimos espaço com algumas marionetes vazias, com a falta de perspectiva; na rua um Mendigo aos trapos passava carregando um dicionário nas mãos. Carregava consigo um manto para o frio, roupas negras e marrons de sujeira, e nas mãos um dicionário. Junto com dois gringos o mendigo subiu no ônibus pela porta de trás, o Motorista Trocador não teve tempo nem de notar, já que discutia veemente com o Caminhão. O Mendigo não tinha uma das mãos, seu corpo era arqueado e parecia carregar problemas nas juntas. Não pude deixar de notar em seu olhar uma chama curiosa; a chama da vida, apesar de seu corpo aparentar fraco e desajeitado, seu olhar carregava a força de vinte homens. Nisso se sentou ao lado do Senhor catador de latinhas, consegui ouvir algo do tipo:
- Para onde você vai com estas latinhas? – perguntou o Dicionário.
- Vou vender por aí. – Respondeu a Latinha. – E Você, vai pára onde com este dicionário? – Argumentou de volta a Latinha.
- O dicionário é para eu não me perder, eles querem que a gente se perca por aí, mas não eu, jamais me perderei. Eles gostam de nos confundir, e com isso aqui – Disse apontando pro dicionário - eu chego a qualquer lugar. Eu já estudei gramática.
- Quem são eles?
- Somos todos nós. – Completou o Dicionário. – Se existir o espírito, eu tenho o espírito mais forte de todos os tempos, pois mesmo neste corpo aleijado eu ainda não fui quebrado, mas se houver só corpo e carne, eu já estou no inferno. - Olhei de volta e consegui ver tudo minuciosamente; todos os objetos decifrados em suas moléculas, tal qual um microscópio. Olhava minhas mãos em minúsculas bolinhas, que em sua forma cru, criava o seu contorno. O que poderia ser distante desta perspectiva? Se existe sempre algo além do minúsculo, o que poderia ser maior que o universo? Quando percebi, já estava em mais um ponto de ônibus e talhava a subir pedestres. Subitamente vejo o Senhor manco retornando do banco de passageiro de trás:
- Motorista, este ônibus não vai para Praça da Cruz Vermelha? – Interpelou meio trôpego. Com dificuldade balançou entre outros passageiros.  
- Você não ia para Rua México? – Completou o Motorista.
- Porra! Óbvio que não, acha que não sei pra onde estou indo? Puta que me pariu! Só me faltava esta, o Senhor é analfabeto das ruas? – Desembestou o Senhor Manco.
- Eu tenho o meu dicionário! – Riu o Mendigo. Que bafo.
- Será que este ônibus vai realmente passar na Cinelândia? – Entreolhou-se o casal na frente.
- Cara, é só você saltar aqui e ir andando reto pela Riachuelo, simples. – Arguiu o Motorista. Eu nem sabia mais para onde estava indo, talvez a Praça Mauá, mas do jeito que iam as coisas, dificilmente este ônibus passaria pela Praça. Paramos num sinal, algumas pessoas gritaram para abrir a porta de trás, porém o Motorista Trocador se recusou e gritou lá da frente que só abriria a porta no ponto. Houve reclamações, mas o Motorista estava certo, contudo abriu a porta e saiu em movimento com o veículo, irritando os passageiros:
- Porra! Vai tomar no cu, seu filho da puta! – Gritou alguém.
- O ventre da sua progenitora está infectado pelos germes da pútrida lança de um transeunte fecal. A porra do seu Pai é infecunda. – Gritou rindo o Mendigo do Dicionário, apenas por escárnio. O ônibus parou no ponto e as pessoas desceram contrariadas, muitas gritando com o Motorista.  A viagem seguiu. O ônibus trafegava com seus passageiros personagens. A rua ia se despedindo do seu aspecto antigo e dando uma face menos artística, os quadrados vão sobrepondo os detalhes, alternando modernidade e clássico, e parece que estamos cada vez mais perto do Centro. Um cara do meu lado comenta:
  - O que deu neste Motorista? Não sabe o itinerário? – Pareceu meio preocupado. Suspirei fundo e não disse nada. As pessoas olhavam incrédulas pelas janelas, simplesmente não parávamos mais em ponto nenhum. Todos gritavam histéricos pedindo pra pararem a porra do veículo, e de nada adiantava, seguíamos fortes, como numa pista de alta velocidade. Sacolejava muito, pois íamos ziguezagueando fugindo dos carros, outros carros e mais motos. O vento batia na cara, pessoas se agarravam nas cadeiras e nos corrimões. O motor rugia furioso na medida em que aumentava a tensão e a velocidade. Pedestres começaram a fugir desembestados nas ruas, desviam-se insanamente de um ônibus descontrolado no meio do Centro do Rio de Janeiro, enquanto eu só procurava saber o número do ônibus para jamais repetir esta burrice. Passageiros tentavam abrir a janela de emergência, uns discordaram e armaram uma briga dentro do ônibus. O casal queria abrir a janela, o Mendigo do Dicionário brigava tentando fechá-la. A mulher segurou na alavanca, e quando iria puxar, Mendigo a segurou pelo braço e tentou se explicar:
- A Senhorita não deve! Não pode! Iríamos todos perecer, cairíamos a fora do veículo, e num reflexo de segundos, seríamos atropelados e – Dizia cândido e meio confuso dos pés, tentando se equilibrar no veículo, contudo não conseguira terminar sua sentença. O Marido lhe empurra pra longe, fazendo com que os dois caiam rolando e sem controlo até a porta de saída do ônibus. Num inesperado segundo a porta se abre e ambos são cuspidos para fora do ônibus. O Marido é logo tragado para debaixo de outro ônibus e tem a cabeça esmagada pelas rodas. O cérebro e pedaços do crânio explodem pelas ruas trazendo desconcerto aos pedestres que ali passavam. Virei o rosto enojado e senti o nó clássico na garganta, quando tememos pela nossa vida. Uma lágrima desceria pelo meu rosto se o vento não a secasse antes. Olhei de novo para a porta de saída e vi o Mendigo pendurado, tentando com todas suas forças, tremendo, subir de novo no ônibus. Logo ele mostra os dentes num sarcasmo e se solta da porta. Seu corpo rola nas ruas e logo uma moto passa por cima de seu corpo. O Motoqueiro e o Mendigo rolam com a moto no chão. As tripas ficaram a mostra. O tráfego de carros aumentou e percebi que o sinal na frente estava vermelho, contudo não diminuíamos, na verdade aceleramos.   cangote do Motorista Trocador e tentou arrancá-lo do volante, ambos ficaram se estrangulando, puxando um ao outro, no mesmo tempo em que via os carros parados se aproximar.  Houve uma tremenda colisão; o saco de latas do Senhor Manco de Camisa Esburacada abriu e recheou o veículo de latas. Alguns passageiros foram lançados pra frente e colidiram a cabeça na poltrona. Pareceu um grande strike. Carros foram amassados como papel e lançados para frente com violência. O Passageiro de camisa Azul largou o Motorista Trocador e foi arremessado contra a porta de entrada do ônibus desgovernado. O Motorista caíra também para fora do volante, logo ele se recupera abrindo a porta de entrada, cuspindo mais um passageiro. Num ímpeto de caos e destruição, o Motorista Trocador atropela, em atos vis, todos os carros que param diante de sua fúria incontrolada. Seus olhos estavam arregalados numa gargalhada macabra. O ônibus tremia com brutalidade em cada choque bestial. Os gritos histéricos aumentavam o terror. Não sabia o que fazer, estava em torpor; A realidade nos surpreende com sua criatividade infinda. Num supetão uma passageira que segurava na poltrona é atirada pro corredor, sem agilidade alguma, ela virara refém do sacolejar do veículo, rolava para todos os lados do ônibus. Chorando ela esperneia e grita olhando para mim, querendo que eu segurasse em suas mãos, conseguia ver as lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Senti-me fraco e sem forças, uma marionete teria mais vigor. Vi as mãos suadas fraquejarem, as minhas e as dela; não podia fazer nada, ela estava distante de mim, meus dedos afrouxaram; aquela pobre mulher não podia se segurar, pois era pesada demais. Não demorou muito e seu corpo voou porta a fora. Travei meus pés em baixo dos bancos de metal para sustentar meu corpo melhor, a cada tranco pensava que eu seria o próximo a sair pela porta. Mais um passageiro pulou no pescoço do Motorista Trocador, levando uma violenta cotovelada no nariz, o sangue espirra em gotículas no vidro. Atordoado o Passageiro dá dois passos para trás cambaleante. Seus olhos reviraram no mesmo tempo em que caiu inutilmente no chão. Seu corpo jorra inconsciente para debaixo de uma das poltronas. Abruptamente paramos. Meu corpo é arremessado pra frente, chego a bater o rosto na poltrona da frente. Um calor cortante desce em cores rubras na minha face. O silêncio contrasta o caos e o rastro de destruição deixado pelo ônibus. Os poucos restantes dos passageiros começam a olhar em volta, incrédulos, não fazendo a puta idéia do que realmente havia acontecido; alguns choravam descontrolados, soluçavam diante do fato de ter encarado a morte de tão perto. Olhei para minhas mãos, queria saber se havia perdido algum dedo no acidente; estavam todos lá. As lágrimas vieram sem soluços, não pelo susto, mas pelas mortes em que nada eu pude fazer. Era difícil de acreditar no que acontece. Talvez eu ainda estivesse em minha cama e tudo fora um pesadelo, ou uma piada de mau gosto, entretanto o gosto amargo do sangue em meus lábios me trouxe de volta a realidade. Fechei meus olhos tentando reaver meu alto controle e me senti feliz por estar vivo, ainda. O motor havia se calado, tudo parecia um breve silêncio. Uma multidão fora do ônibus observava tudo num reality show. Tonto vendo tudo em flashes, tropeço numa pessoa, caio de cara. De repente alguém puxa meu braço me erguendo. Era um policial com uma roupa estranha. Começou a me carregar pelo braço, outros passageiros também são socorridos. Antes de sair, vejo o Motorista Trocador de cara no volante com um buraco na testa, os miolos esparramados e um pouco dele no que sobrou do vidro da frente. Não tenho tempo para pensar, vou caminhando arrastando os passos numa pressa contínua. Um helicóptero sobrevoava o local em vôos rasantes. Sinto saudades de amores que nunca mais vi, nem tive breves noticias. Queria poder tocá-las mais uma vez, mas estão mortas, sumidas no mundo. Arrependi-me de não ter feito coisas, do medo do ridículo; e pela primeira vez na vida comecei a encarar o mundo de forma estranha, nunca tinha percebido que a vida me pertence, que apesar de ser um ser social, vivo para mim e meus prazeres, e desde que não interfira na vida alheia, posso fazer o que quiser; posso escolher meu rumo e meu aprumo. Caminhava atônito entre o caos. Ainda sendo carregado olhei para o ônibus em chamas, estava tão aturdido que não havia percebido que ele começara a pegar fogo. Os bombeiros foram depressa apagar as chamas, temendo alguma explosão cinematográfica. Nunca mais seria o mesmo, uma parte de mim havia morrido no ônibus, junto com aquelas pessoas que não tiveram a mesma sorte que nós sobreviventes. Chorei por eles e por mim. Uma paramédica veio em meu socorro olhar meus ferimentos, e sem pensar duas vezes, abracei-a forte em meus braços num soluço sem fim; chorei toda minha confusão.