sexta-feira, junho 27, 2008

Sem Moedas.






Faltava pouco para a hora exata do Ônibus que me levaria de volta ao Rio de Janeiro. Coloquei no chão minha mala e fiquei olhando o movimento urbano insano. Havia certo odor de queimado no ar, como se ali perto alguém queimasse um pouco de lixo. Não chegava a feder, mas era um odor forte, dava pra fazer uma careta. A rodoviária estava lotada de transeuntes, muitos com a casa nas mãos; caixas, caixotes, embrulhos, malas e mais pacotes, eram coisas que não acabavam mais. Simplesmente meu dinheiro acabara. Não sobrara nada pra contar porra nenhuma. Bem provável que o mesmo acontecera com aquelas pessoas. Fodidas sem ter pra onde ir, jogados pela sorte de suas fantasias. Num súbito instante, o odor de queimado é tragado por um inesperado perfume de chuva. Não demorou muito pra água começar a alagar os céus, era uma torrente assustadora; de certo meu ônibus iria atrasar. A água inundava o asfalto, afogando minhas expectativas de sair dali tão cedo.
- Oi Moço, com licença... - Não percebi este cara se aproximando. Seus olhos eram tristonhos, cheios de mágoas e transtornos, assim como a chuva, transbordava a aflição na forma de uma tempestade, fortalecida num vento seco e frio pela pena de si mesmo.
- Claro. Algum problema? - Sua fisionomia era o sofrimento embutido num rosto mulato.
-... É que eu venho de muito longe... - Seus braços eram magros, com algumas feridas. Vestia uma camisa folgada de abotoar junto à calça jeans maltratada, assim como a própria presença deste infeliz. Pelo menos era a única coisa que ele passava; infelicidade. -... Meu pai acabou de morrer, teve um infarto fulminante. Tava no banho. Eu tenho dois filhos pra cuidar e minha mulher ta com o meu veio na geladeira, só me esperando pra enterrar o coitado... - Seus olhos esbugalhados, não sei como, ficavam cada vez mais arregalados conforme falava. -... Meus meninos também estão me esperando e eu tenho que voltar pra casa. O senhor não tem como me ajudar a pagar a passagem? - Claro que a história me comoveu, ainda mais contado por um pobre fodido como aquele. Infelizmente, em todos os sentidos, me veio à lembrança de outra história bastante parecida. Eu estava na rodoviária no Rio pra uma viagem e me surge um carinha contando uma historia bem parecida com esta, querendo dinheiro pra passagem. Eu dei o dinheiro pro cara, e segui meu destino. Quando eu volto depois de duas semanas, o mesmo carinha me pediu dinheiro contando a mesma historia. Eu apenas ri e disse; cara, você já me contou esta merda, não lembra? Ele me reconheceu e olhou assustado. Seguiu seu rumo olhando de soslaio, meio tropeçando em seu medo alimentado pela imaginação. Voltei ao presente com aquele pobre infeliz me encarando, esperando sua resposta. - Cara, eu não tenho um puto sequer... - E não tinha realmente, todavia isso não pareceu verdade, ou pelo menos o rapaz não acreditou em minhas sinceras palavras. Seus olhos que estavam pidonhos, cheios de lágrimas de esperança, tornaram-se frios e secos. Fechou a cara e não disse mais nada, começou a andar sem olhar pra trás, como se eu nunca estivesse estado ali, ou existido de fato. Acharia tudo muito triste se não fosse cômico. Logo estava pedindo dinheiro a outro transeunte. Senti uma leve fisgada no estômago, ao ver uma menina passar com um sanduíche, estava deliciosamente suculento. A cada mordida o recheio transbordava, escorrendo pelos dedos e a boca mastigava lentamente, deixando um pouco do molho peregrinar pelo queixo. A mãe segurava a mão da filha sem se importar com a meleca toda, tive vontade de arrancar o sanduíche da mão da criança e sair correndo, contudo me contive em minhas amarras sociais, não cheguei neste ponto ainda. Cada individuo fazia de si parecer um universo em particular; dois caras passaram por mim sem camisa ostentando umas tatuagens com mulheres abrindo suas bocetas no rosto de quem olha pra tatoo; Uma ninfeta passa por mim rebolando seu lindo rabo, devia ter seus dezesseis anos. Ela segue conversando com uma amiga rumo ao ônibus; um motorista deixa o carro na rua e sai correndo devido a chuva avassaladora, chegando ao lugar coberto, já esta todo ensopado resmungando alto. O motor ronca alto, então vejo meu ônibus encostando-se à plataforma indicada. Pego minha mala e fico aguardando a hora para adentrar e sentar em meu assento. O motorista fica do lado da porta dianteira, olhando-me de soslaio com um olhar obtuso. Este homem possuía uma face estranha, parecia um abutre cheira cu, um ar de nojo lhe preenchia o ser que me apresentava. Entrego minha passagem em mãos deste Abutre em repulsa e, sem deixar de prestar atenção aquela peculiar caveira, dou o primeiro passo na escada que sobe o ônibus. Abruptamente minha mala é arrancada com violência dos meus braços, uma mão segura na gola da minha camisa social e me joga ao chão de forma estúpida, e sem entender fico por terra. Senti-me fraco e humilhado. A voz gritava furibunda.
- Onde pensa que vai? - Era uma voz personificada grave.
- Como assim? Eu acabei de dar pro Senhor a passagem. - Retruquei injuriado. Foi então que percebi dois policiais me erguendo do chão com brutalidade por ambos os braços. Um já estava revirando minha mala buscando algo de ilícito, jogando tudo a esmo, enquanto o outro colocava o dedo fedorento na minha cara.
- Nós estamos de olho em você há muito tempo rapazinho, esgueirando-se pelas vielas da multidão, sempre fugindo das verdades e da razão de ser...
- Mas do que porra você está falando?
- Olha a boca meu rapaz - Outro policial me encosta ao ônibus com o dedo em riste.
- Você sabe do que estou falando, seu vermezinho do imundo, sempre se aproveitando das fraquezas do sistema para fortalecer suas atitudes vis. - Minha mala já estava vazia com as roupas jogadas por todo o lado. De repente, mais que de repente, o policial se levanta afoito e esbaforido, sorrindo aliviado por encontrar algo.
- Veja Sargento, achei alguma coisa. - Era um baseado que havia guardado pra mais tarde, sabe como são as coisas. O fino já estava confeccionado e dentro de um pequeno saquinho plástico, destes que vem no maço de cigarros.
- Mas o que diabos... - Logo um safanão me corta o ouvido. Fico ouvindo estrelas e sinto arder a face. Coloco a mão em cima de minha pele avermelhada. A raiva também já me fere os sentidos.
- Seu filho de uma puta, escondendo o jogo desde o princípio, seu traficante de merda! - O ódio germina nos olhos do sargento, enquanto a multidão se formava ao nosso redor. Estava montado o teatro, e me senti o protagonista.
- Senhor, isso é só um fininho pra consumo próprio, não pretendo vender...
- Você é pior que o traficante, você alimenta esta merda toda, a desgraça que consome o país é sua culpa! - Algumas pessoas se mostraram satisfeitas pela atitude do sargento, outras, porém, viram-se ofendidas em seu íntimo, um excesso sem necessidade.
- Eu não sou pior, nem melhor que ninguém, cada um consome... - Outro tapa me zuniu aos ouvidos. Sinto o rosto queimando e inchar.
- Vocês são a desgraça, sem sentido e sem valor, não prestam nem pra trabalho comunitário... - Nisso recebo um soco na boca do estômago. Caio com a mão na barriga e me encolho entre as pernas.
- É só um digestivo, porra! - Grito impulsionado pela exaltação.
- E ainda quer falar alguma coisa? - Sinto um chute no meu joelho e caio de lado ao chão. O outro policial se afasta juntando minhas roupas e colocando na mala. Estas pequenas ações tiram a atenção do sargento, fazendo-o olhar para o outro lado. Eu o agarro pelos pés, derrubando-o sem jeito por conta de sua enorme pança. O sargento ainda tenta agarrar meus braços, mas eu me desvencilho e consigo alcançar sua arma em seu coldre. Levanto rapidamente com a arma em punho, destravo-a e aponto para o policial que corria em nossa direção. O tumulto se torna um grande alvoroço. As pessoas que observavam quietas e sem reação, correram desesperadas buscando proteção.
- Para aí seu filho da puta! – Grito feroz – Sabe o que falta nesta porra? Diálogo seus merdas! Diálogo! É isso e acabou? Seu gordo escroto, você não gosta da cachacinha, não faz sua sujeira cobrando cervejinha? Eu gosto de um doisinho. E você também é um puta hipócrita, vive chafurdando na merda que nem um porco e quer ser juiz de alguém? – Nisso bico a cara do sargento. Ele chora. Nisso, bico de novo. Ele cospe um dente e fica gemendo. Neste meio tempo ele faz uma careta, como reprimindo algo que alguém faria atrás de mim. Decido então atirar na cara do Gordo escroto. O sangue dele explode por todo o canto. Meu ombro explode junto com a cabeça do gordo. Vejo o sangue jorrar no ar, meu corpo sente a perda do movimento de um dos braços, mas ainda tenho o outro. Num movimento lancinante, viro atirando em quem quer que seja. Meus sentidos aguçam neste momento, como num passe de bruxaria. Consigo dar dois tiros, acertando um na testa de outro soldado que se aproximava, e nas costas de um transeunte desesperado. O soldado mais próximo a mim, se enrola na hora de sacar a arma, dando tempo para eu virar. O soldado dispara e acerta meu estômago, no mesmo tempo em que acerto um tiro em seu peito. Desabo ao chão semi consciente. Os ferimentos ardem incontrolavelmente, rasgando a pele junto à carne. O sangue domina o perfume da chuva e o rubro a cor ao redor. Os gritos fazem uma sinfonia assustadora. Tudo por causa de um maldito baseado. As idéias se esvaem e o rosto cai pro lado. A chuva caindo violentamente lavando a alma que se põe junto ao sol. A paisagem se tornara o palco do terror, de certo veria meu nome nos noticiários, na verdade eu não veria, mas outros saberiam quem fui. O som da chuva aturdiu meus sentidos e os sonos dominam o vago, até o vazio dominar a fantasia.

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